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Areia Movediça e o perigo do complexo de salvadora

por Carolina Luz de Souza - CRP 06/87499


A série sueca Areia Movediça, que estreou o ano passado na Netflix, é um primor de direção, fotografia e atuação. Além disso, traz em seus curtos seis episódios vários assuntos de extrema importância a serem abordados. Vou falar um pouco dos personagens e da trama, sem muitos spoilers, mas tentando captar todo o drama tratado.


Começamos com a seguinte cena: uma jovem bonita, ensanguentada, claramente em choque é abordada pela polícia no meio do que parece ser mais um massacre escolar. Maja, a garota em questão, é levada em custódia, examinada da cabeça aos pés e encarcerada sem que tenha contado para a polícia ou para nós, expectadores, o que houve naquela manhã.


Ela vai passar quase o tempo todo encarcerada em uma solitária, onde só terá como companhia seu advogado e uma guarda da prisão que empatiza com o estado emocional frágil daquela garota que acabou de completar 18 anos.


Ficamos sabendo logo nas primeiras cenas que seu namorado, Sebastian, foi um dos perpetradores do massacre e Maja está sendo acusada de tê-lo ajudado. Ela pode passar os próximos 14 anos na cadeia por isso, mas parece aceitar seu destino, como que em penitência pelo que fez.


O massacre é muito menos importante na série do que o caminho que levou até ele. Como esses jovens chegaram até aquele ponto? Como qualquer jovem pode se tornar um assassino? É isso que a série vai retratar.


Maja é uma adolescente tímida, de poucos amigos e uma família tradicional. Mora com os pais e uma irmã 9 anos mais nova. Frequenta a escola, trabalha em meio período e tem uma melhor amiga de infância que é praticamente sua irmã.


Sebastian é um menino rico, popular, que tem absolutamente tudo de material que possa querer. Ele se interessa por Maja e o namoro entre os dois começa rapidamente. Ela, deslumbrada, não entende como ele pode querê-la. Ele, emocionalmente destruído, busca uma âncora que o traga de volta à vida. Mas isso só vai ficando claro para ambos aos poucos.


A grande questão levantada pela série é o abuso. Ele aparece de várias formas: físico, psicológico, sexual. Mas, para mim, o mais sério e que causa mais estragos é o abuso parental. Sebastian é um menino abusado pelo pai: constantemente humilhado, comparado ao irmão mais velho – sempre em seu detrimento – tem suas necessidades emocionais e de segurança completamente ignoradas. Além disso, o pai de Sebastian realiza alienação parental, manipulando o filho para que odeie sua mãe, que o deixou quando era criança.


Os pais de Maja se tornam bastante negligentes em relação a ela e sua segurança. Deslumbrados com o poder e a riqueza da família de Sebastian, não questionam as atividades dos dois, o tempo cada vez maior que passam juntos nem as mudanças aparentes de comportamento da menina. Em um momento, Maja questiona a mãe: “Por que você nunca me pergunta nada importante?”


É comovente ver a solidão em que a personagem se encontra nessa cena. Maja vê seu conto de fadas se despedaçar diante da destruição emocional do namorado. Ela é a única a presenciar a constante violência do pai de Sebastian. Ela sabe que ele está em perigo, já na corda bamba. É isso que a prende a ele.


Nesta história, a vítima de abuso não está com o abusador porque depende emocionalmente dele, mas porque percebe que ele depende emocionalmente dela. “Achei que poderia salvá-lo”, ela diz. Mas como uma menina pode salvar alguém de si mesmo?


Esse fardo torna-se ainda mais pesado porque todos a seu redor insistem em colocá-lo em suas costas. Seus pais, o pai de Sebastian e até sua melhor amiga, Amanda. Mesmo quando tenta desvencilhar-se desse relacionamento que se torna abusivo rapidamente, Maja se vê novamente presa, já que ele não tem com quem contar. No momento em que está internado no hospital é para ela que ligam, mesmo tendo já terminado o namoro. A governanta da casa de Sebastian deixa claro que o pai dele não virá e que estão contando com Maja para cuidar do garoto.


Afundando cada vez mais na areia movediça do abuso e da ruína emocional, os dois ficarão juntos até seu final trágico.


Areia movediça não é um simples entretenimento, mas uma oportunidade de reflexões profundas. Como retratado em muitas séries sobre a juventude, esses adolescentes estão sozinhos. Não sentem que podem falar ou confiar em nenhum adulto. Os pais são omissos ou violentos. Para onde correr?


Maja acredita que precisa e pode salvar Sebastian. Como muitas mulheres, julga que seu amor pode transformar a Fera em príncipe. Nossa cultura propicia esse tipo de crença, a mulher que sofre pode sentir-se tomada pelo complexo de salvadora, acreditando de verdade que verá seu companheiro mudar se ela o amar o bastante. O desfecho, na maioria das vezes, é outro. Podemos oferecer apoio, compreensão e amor até um certo ponto. Existem feridas que são muito mais profundas do que o amor de uma mulher pode curar. E o abuso, de qualquer forma que apareça, não é aceitável, mesmo que seja praticado por quem está ferido.


Maja não procurou ajuda e não soube respeitar seus limites. Sebastian entregou-se à sua ferida, à raiva e solidão que o consumiam. Isso levou os dois ao fundo do desespero. Ninguém pareceu entender ou perceber o que estava se passando até que fosse tarde demais.


Não somos salvadores de ninguém, não podemos ser. O melhor que podemos fazer é conhecer e respeitar nossos limites e, antes de amarmos o próximo, amarmos a nós mesmos. Devemos ensinar as meninas a serem cuidadoras de si mesmas e a não viver com a incumbência opressiva de salvar o outro nem seus relacionamentos. Precisamos urgentemente criar espaços de escuta para os jovens que estão atordoados com as muitas exigências do mundo moderno. Se Maja e Sebastian tivessem sentindo que pertenciam a uma comunidade que cuidaria deles, talvez seu desfecho tivesse sido diferente.



Carolina Luz de Souza (CRP 06/87499) é psicóloga junguiana e perinatal e mestre em Psicologia Clínica. Atende mulheres, gestantes e crianças presencialmente em Campinas- SP e também de forma online para todo o Brasil e o exterior. É apaixonada por séries e recentemente concluiu sua monografia sobre O conto da aia e a sociedade brasileira. Acompanhe seu trabalho em:

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